A dialéctica da construção social: Ricardo Vieiradoutor em Antropologia Social, 1998
Falar de identidade é falar de construção dinâmica, de constante reestruturação - constante metamorfose - para um novo todo. Mas o todo não é uma mera soma de partes como muito bem frisou Durkheim. O todo - e a identidade é um todo complexo - não pode ser inferido a partir das qualidades das partes. Por isso não há determinismo no comportamento humano. Semelhantes trajectórias e similares modelos de influência podem produzir até diferentes identidades. Podem criar cidadãos com identidades, práticas e representações sociais até antagónicas. Este mistério, esta imprevisibilidade, parece ter origem na forma como se combinam os elementos desse todo. E entre pessoas, isso é parte da subjectividade de cada um que urge no entanto estudar para comprender como se forma o ser.
Vejamos todavia um primeiro exemplo bem mais objectivo, retirado do domínio das Ciências da Natureza, onde o princípio identitário que referi atrás, vale da mesma maneira: " Um frasco cheio de cloro aberto é perigoso. Um pedaço de sódio também; é um metal explosivo. Contudo, da junção de um átomo de cloro com um átomo de sódio, resulta o cloreto de sódio, o nosso familiar sal de cozinha, que é inofensivo. As suas propriedades não podem ser inferidas a partir dos dois elementos que o compõem. Todas as associações acabam por ser um pouco imprevisíveis. A complexidade do todo, de um objecto físico, de um grupo social, de uma identidade pessoal, etc., é tal, que se torna extremamente difícil resumir o seu comportamento a uma sucessão de determinismos em que os factos sejam explicados por uma listagem de relações do tipo causa-efeito.
A auto-construção da identidade, do Eu
Contudo, o problema torna-se ainda mais complexo no domínio das identidades pessoais e culturais. Esse todo identitário - o homem - é construído e constrói-se a si próprio. "Entre a acção dos outros (heteroformação) e a do meio ambiente (ecoformação), parece existir, ligada a estas últimas e dependente delas, mas à sua maneira, uma terceira força de formação, a do eu (autoformação). Uma terceira força que torna o decurso da vida mais complexo e que cria um campo dialéctico de tensões, pelo menos tridimensional, rebelde a toda a simplificação unidimensional" (Pineau, 1985: 65).Na construção da identidade pessoal, a tomada de consciência do eu e do outro, faz-se tanto pelo jogo de oposição e demarcação (enclausuramento no nós cultural) como pelo da assimilação (abertura à diferença). Nos dois casos há comunicação, processos interactivos caracterizados pela existência da percepção da alteridade.
Com o crescimento, a criança constata cada vez mais o outro. Vê-o na televisão, encontra-o na escola e noutros grupos sociais onde vai cada vez mais interagindo. A criança, entretanto adolescente, vai descobrindo a alteridade sociocultural: outros comportamentos, outras referências, outras representações, outras religiões, outras etnias, etc. O jovem adolescente vai então arrumando a diversidade aprendendo a identificar e a classificar as diferenças. Começa a fazer a aprendizagem da diversidade cultural. Mas fica em aberto o modo como arruma a diversidade: de forma hierarquizada, desigual ou não, simplesmente alternativa, etc.A identidade e a alteridade constroem-se neste processo de interacção onde o indivíduo percorre o caminho entre o nós e o outro que vai descobrindo. O indivíduo acede à consciência de si, por diferenciação dos outros e assimilando a identidade do grupo que designa e identifica como seu.
Cada homem quer transformar o que não é seu naquilo que quer, e que quer que seja seu. Busca assim uma síntese com a acção que ele quer. Constrói-se assim o Eu. Uma construção cuja matriz cultural é o outro. São os outros que constituem os referenciais; ou pelo menos, parte dos outros reajustadas ao eu que se torna assim num nós. É efectivamente o outro que dá sentido ao eu. Surge assim um projecto de existência. Depois é-se outro. Foi-se metamorfoseado, reconstruído. Mas é o homem que se autocria na globalidade. Recria-se um novo eu, um novo outro, um novo mundo. É por isso que só com os outros e com o contexto a pessoa é. A mudança pessoal e social também só é assim possível para uma nova totalidade. Mudar é reconstruir a identidade pessoal, profissional, etc.Vinicius de Moraes, poeta brasileiro, escreveu em poema “o operário em construção”. E com ele termino justamente com um trecho onde o autor me parece colocar bem a dialéctica da construção social:
O operário em construção
Mas ele desconheciaEsse facto extraordinário:Que o operário faz a coisaE a coisa faz o operário.[...]O operário emocionadoOlhou sua própria mãoSua rude mão de operárioDe operário em construçãoE olhando bem para elaTeve um segundo a impressãoDe que não havia no mundoCoisa que fosse mais bela.Foi dentro da compreensãoDesse instante solitárioQue, tal sua construçãoCresceu também o operário.Cresceu em alto e profundoEm largo e no coraçãoE como tudo que cresceEle não cresceu em vãoMas ele desconheciaEsse facto extraordinário:Que o operário faz a coisaE a coisa faz o operário.[...] O operário emocionadoOlhou sua própria mãoSua rude mão de operárioDe operário em construção
E olhando bem para elaTeve um segundo a impressãoDe que não havia no mundoCoisa que fosse mais bela.Foi dentro da compreensãoDesse instante solitárioQue, tal sua construçãoCresceu também o operário.Cresceu em alto e profundoEm largo e no coraçãoE como tudo que cresceEle não cresceu em vãoPois além do que sabia- Exercer a profissão -O operário adquiriuUma nova dimensão:A dimensão da poesia.[...]Uma esperança sinceraCresceu no seu coraçãoE dentro da tarde mansaAgigantou-se a razãoDe um homem pobre e esquecidoRazão porém que fizeraEm operário construídoO operário em construção.
(MORAES, 1988: 98-102)
Maiakovski
Maiakovski - Poeta russo "suicidado" após a revolução russa de 1917… escreveu, ainda no início do século XX :
Na primeira noite, eles se aproximam e colhem uma flor de nosso jardim. E não dizemos nada.
Na segunda noite, já não se escondem, pisam as flores, matam nosso cão. E não dizemos nada.
Até que um dia, o mais frágil deles, entra sozinho em nossa casa, rouba-nos a lua, e, conhecendo nosso medo, arranca-nos a voz da garganta.
E porque não dissemos nada, já não podemos dizer nada.
Depois de Maiakovski…
Primeiro levaram os negros
Mas não me importei com isso Eu não era negro
Em seguida levaram alguns operários Mas não me importei com isso Eu também não era operário
Depois prenderam os miseráveis Mas não me importei com isso Porque eu não sou miserável
Depois agarraram uns desempregados Mas como tenho meu emprego Também não me importei
Agora estão me levando Mas já é tarde. Como eu não me importei com ninguém Ninguém se importa comigo.
Bertold Brecht (1898-1956)
Um dia vieram e levaram meu vizinho que era judeu. Como não sou judeu, não me incomodei.
No dia seguinte, vieram e levaram meu outro vizinho que era comunista. Como não sou comunista, não me incomodei.
No terceiro dia vieram e levaram meu vizinho católico. Como não sou católico, não me incomodei.
No quarto dia, vieram e me levaram; já não havia mais ninguém para reclamar...
Martin Niemöller, 1933 - símbolo da resistência aos nazis.
Primeiro eles roubaram nos sinais, mas não fui eu a vítima,
Depois incendiaram os ônibus, mas eu não estava neles;
Depois fecharam ruas, onde não moro;
Fecharam então o portão da favela, que não habito;
Em seguida arrastaram até a morte uma criança, que não era meu filho...
Cláudio Humberto, em 09 FEV 2007
O que os outros disseram, foi depois de ler Maiakovski. - até quando?...
Incrível é que, após mais de cem anos, ainda nos encontremos tão desamparados, inertes, e submetidos aos caprichos da ruína moral dos poderes governantes, que vampirizam o erário, aniquilam as instituições, e deixam aos cidadãos os ossos roídos e o direito ao silêncio : porque a palavra, há muito se tornou inútil…
Sem comentários:
Enviar um comentário